Stayaway COVID

No rescaldo do tweet do deputado e presidente do PSD Rui Rio relativamente ao Stayaway COVID, uma série de Netizens, que foram gentilmente explicar o funcionamento da App aos senhores deputados, viram as suas contas bloqueadas pela deputada do PSD Catarina Rocha Ferreira. Este bloqueio, irá impedir estes Netizens conscienciosos de disponibilizar futuras explicações.

Já o Primeiro Ministro e o Governo, decidiram recentemente propor que a Assembleia da República votasse a obrigatoriedade da instalação dessa mesma App.

O resultado não se fez esperar.

Entre o clamor e rasgar de vestes nas redes sociais, só nos últimos dias foram feitos mais de 2 milhões de downloads da referida App.

Então e uma Associação Sindical dos Políticos?

Quem vir a peça da SIC “Revisão do Estatuto dos Magistrados Judiciais contempla aumentos salariais ” [1], onde o sr. Manuel Ramos Soares fala, na qualidade de Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, pode pensar que se enganou no país.

Vamos por agora fazer de conta que está tudo bem com a ideia dos representantes do órgãos de soberania se reunirem numa associação de defesa de interesse e que isso não levanta dúvidas a ninguém. Outros tratarão desse assunto [2].

Vamos focar-nos apenas nas palavras do dirigente sindical dos juízes portugueses.

Na reportagem, este representante sindical dos juízes diz coisas como:

[Em relação aos órgãos reguladores nacionais] “Esses não são para juízes. Isso são trabalhos para amigos políticos, de pessoas que estão ali seis ou sete anos a ganhar principescamente.”

[Em relação às forças armadas e de segurança]: “somos titulares de órgãos de soberania, portanto temos de ser comparados, acho eu, com os.. pessoas que exercem cargos políticos, mas com uma diferença.”

[Em relação aos cargos políticos]: “Nós não estamos nesta função 4 anos, vindos de uma profissão qualquer, e depois, saltamos para uma empresa pública ou para um trabalho no estrangeiro. Nós trabalhamos nisto 40 anos com exclusividade absoluta.”

Para o Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, não ser nomeado politicamente e ter exclusividade absoluta por muitos anos, é o que distingue os juízes dos políticos, membros dos conselhos de administração das entidades reguladoras, forças armadas e forças de segurança

Para Manuel Ramos Soares, a titularidade de um órgão de soberania não é suficiente. Teve de acrescentar o mesmo contexto que todos os outros funcionários do estado já tem.

Pois convido o senhor Manuel Ramos Soares a analisar os estudos feitos relativos, por exemplo, às origens dos membros de cargos de representação democráticos, os quais chamou resumidamente de “cargos políticos”. Talvez assim perceba o que escapa aos aspirantes a.

Ou veja, por exemplo, a origem e formação dos membros dos conselhos de administração das Autoridades Reguladoras Nacionais. Ou a forma como são selecionados e escrutinados. De acordo com a lei, os seus órgãos são escolhidos pelos eleitos da democracia, escrutinados pelo nosso parlamento, lá está, mais eleitos pela democracia, e testados pelos regulados, os tais capitães da industria selecionados pela meritocracia dos negócios.

Ou procure informar-se sobre os assuntos e as matérias que um militar tem de saber para executar uma operação: noções de logística, leis internacionais, informação geopolítica e essas miudezas que não o afligem porque estes homens dedicaram a sua vida a proteger o sistema democrático, do qual ele representa um dos pilares, o da justíça.

Mas acima de tudo, vá ver porque é que não faz sentido um titular de um órgão da democracia jogar mão de um direito ganho para os trabalhadores para fazer valer os interesses dos titulares desses órgãos.

É que, ao contrário daqueles que representa, os trabalhadores não têm poder, nem meios financeiros, resultado dos ordenados que os seus representados ganham acima da média dos trabalhadores do país. Essa sim a razão pela qual a Constituição da República Portuguesa tem garantir proteção e permite que se unam em sindicatos para, através do coletivo, fazerem valer os seus direitos e reivindicações.

Mas acima de tudo, pergunte-se, como valoriza o povo a justiça depois de saber que os titulares dos seus órgãos se reuniram numa associação de defesa de interesses, como é um sindicato.

E já agora, se os membros da Associação Sindical dos Juízes querem é ser comparados com os… cargos políticos, responda-me a esta pergunta: então e se os políticos fizessem uma Associação Sindical dos Políticos, como ficaria o equilíbrio de que depende a democracia?

Referências:

  1. “Revisão do Estatuto dos Magistrados Judiciais contempla aumentos salariais” https://sicnoticias.pt/pais/2019-08-07-Revisao-do-Estatuto-dos-Magistrados-Judiciais-contempla-aumentos-salariais
  2. “Sindicatos de juízes deviam ser proibidos” http://4.bp.blogspot.com/_xAb1Z1hNf_s/SuisrxIeaCI/AAAAAAAAEMs/UZoWKqkO1xE/s1600-h/I.jpg

 

 

À política o que é da política

Em 2017, soube-se por um acórdão que um tribunal decidiu tecer juízos morais sobre a vítima de um crime de agressão.

Nesse acórdão, o Tribunal da Relação do Porto, através do juiz relator, num ato oficial de um órgão de soberania, entendeu que lhe cabia explicar no âmbito de uma análise jurídica que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”; como a agressão não teria sido o pior resultado de um adultério, invocando culturas “em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”; que “na Bíblia podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”; que o Código Penal de 1886 “punia com uma pena pouco mais do que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”; e ainda que “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou (são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras), e por isso [a sociedade] vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher” [1].

A associação Capazes, “promotora de uma ocupação igualitária das mulheres no espaço público”, entendeu que as considerações morais tecidas no acórdão são inaceitáveis.

Uma autora desta associação considerou os argumentos apresentados como machistas e que não é aceitável que um juiz fale por todos nós de castigos físicos e mortais para defesa da honra; que a liberdade sexual tenha um valor distinto entre homem e mulher; e ainda, que o exercício da liberdade sexual possa ser visto como pretexto para a violência e homicídio [2].

Esta e outras associações promoveram uma petição pública com propostas de melhoria do nosso sistema judicial que endereçavam as razões que fizeram deste acórdão notícia. Pediam ainda que a decisão em causa fosse sindicada. A petição foi assinada 28585 vezes [3].

As propostas de melhoria apresentadas na petição eram endereçadas principalmente ao Conselho Superior de Magistratura, mas também à Procuradoria-Geral da República, ao Ministério da Justiça, ao Centro de Estudos Judiciários e à Comissão para a Igualdade de Género. Das propostas da petição faziam parte o pedido ao Conselho Superior de Magistratura para “promover a publicação de todas decisões (decisões sumárias e acórdãos) dos Tribunais Superiores (Relações e Supremo Tribunal) transitadas em julgado”; que fossem determinados momentos formativos dos magistrados com uma maior dimensão interdisciplinar com participação de formadores de outras áreas; e que estes momentos incluíssem a formação para a igualdade de género [3].

O Conselho Superior de Magistratura decidiu, em 2019, sancionar o juiz relator com uma advertência por este e outro acórdão com afirmações de teor semelhante.

Segundo um comunicado do Conselho Superior da Magistratura, a sanção é aplicada ao juiz relator pela “prática de uma infração disciplinar por dever de correção”, mas deixa de fora a juíza coautora “por se ter entendido que não era exigível demarcar-se formalmente de expressões que não integravam o núcleo essencial da fundamentação, antes constituindo posições da responsabilidade exclusiva e pessoal do autor” [4,5].

Concordo com a autora das Capazes. Concordo com as propostas da petição, que assinei e ajudei a promover. A igualdade, a transparência e a separação de poderes têm de ser militantemente defendidas e afirmadas numa democracia.

Não poderia discordar mais da segunda parte da decisão do CSM. Em causa não estão as decisões destes magistrados como cidadãos independentes ou o seu direito à opinião. Em causa estão os atos e omissões destes em nome de todos nós. Em causa estão o exercício de funções do Estado num órgão essencial à democracia.

Cabe às associações livres da sociedade civil, como as subscritoras desta petição, pressionar os decisores na defesa de interesse geral ou de causa. Mas é dever dos partidos políticos defenderem publicamente e de forma intransigente os valores que estão na base do nosso sistema democrático.

A um tribunal, por ser um órgão de soberania não eleito pelo voto popular, não lhe cabe, de forma alguma, apresentar a sua visão sobre a sociedade ou servir de “arauto de um certo Portugal” [6]. Os seus acórdãos não podem ser transformados em panfleto de fação, sobe pena de se perder a separação de funções, e, consequentemente, a de poderes.

Os tribunais, e os juízes no exercício de funções, não podem ser confundidos com atores políticos.

Bem sei que tudo isto ainda é mais aberrante pelo conteúdo das “opiniões” do juiz relator, mas se vezes sem conta se ouvem políticos a deixar aos tribunais os casos em tribunal, é altura de os políticos repetirem mais uma vez “à política o que é da política”.


Referências:

  1. Observador, “Leia aqui o acórdão do juiz que atenuou agressão por causa de adultério”
  2. Inês Ferreira Leite, site Capazes.pt, “Um acórdão lapidar”
  3. Petição Pública, “Essa Mulher Somos Nós”
  4. SIC Notícias, “Juiz Neto de Moura recebe advertência”
  5. Conselho Superior de Magistratura, “Nota à Comunicação Social“
  6. Artur Costa, Blog Sine Die, “Respondendo a Maia da Costa”

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 18 de fevereiro de 2019)

Pode uma ordem profissional confundir-se com um sindicato?

A resposta é não.

Uma ordem profissional não pode defender interesses de classe, até porque “[a]penas podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, estando expressamente afastado o exercício de funções próprias das associações sindicais.” [1].

Uma ordem não é um sindicato, nem pode ser porque não é uma associação de adesão livre. É uma organização que, por delegação do legislador, regula e fiscaliza a atividade dos profissionais que executam a profissão que controlam.

Não seria lógico entregar uma função de controlo de qualidade a quem tem de fazer a defesa de um interesse que é constrangido por essa qualidade.

Nitidamente, uma associação que tivesse o poder regulatório e fiscalizador de uma profissão, e ao mesmo tempo a pressão para obter resultados negociais, estaria num constante dilema entre a defesa dos interesses dos associados e a defesa do interesse público.

Mas esta mistura não aconteceu, nem pode acontecer. Isso seria impor uma classe profissional que para exercer essa profissão tinham de aderir a uma associação de defesa de interesses, sem escolha, sem opção por outra com a sua visão política.

Existem hoje múltiplos sindicatos para cada profissão, empresa, o que reduz a capacidade de um só sindicato controlar toda a atividade de um setor, mas só existe uma ordem por profissão.

No confronto entre a vontade de dar as condições à defesa de um grupo e o direito de todos os outros membros de um grupo em não concordar com a forma reivindicativa, a vontade política tem separado as funções e poderes. Isto retira aos sindicatos a possibilidade de negarem o direito ao trabalho e às ordens de manterem reféns ideológicos aqueles profissionais que não concordem com a sua visão.

“As associações públicas profissionais estão impedidas de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros.”[2]

“Os sindicatos, como associações de direito privado, são de criação e de inscrição voluntária e que não dispõem de poderes de autoridade pública (salvo casos excecionais de delegação)” [3].

“De resto, se as ordens pudessem envolver-se na defesa de reivindicações laborais (carreiras, remunerações, etc.) junto com os sindicatos, as profissões “ordenadas” gozariam de um privilégio de que as demais profissões não dispõem, ou seja, um “supersindicato” com inscrição e quotização universal e obrigatória.”[4]

Imaginem agora que um órgão com poder sancionatório sobre um profissional, que pode tirar o ganha pão da boca desse profissional, usurpava o direito dos sindicatos e se dedicava à organização sindical, usando o seu poder público como meio de divulgação da sua posição.

Adivinhem agora quem disse que “O que é importante é o Governo perceber de uma vez por todas que os Enfermeiros querem negociar” [5]. Foi um dirigente sindical ou estas são as Declarações à SIC da Bastonária da ordem dos enfermeiros?

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[1] Conselho Nacional das Ordens Profissionais, “A função das ordens profissionais”, https://www.cnop.pt/sobre/funcoes/
[2] Lei n.o 2/2013 de 10 de janeiro “Estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais”
[3] Vital Moreira, “Para que servem as ordens profissionais?”, https://www.publico.pt/2010/08/31/jornal/para-que-servem-as-ordens-profissionais-20113088
[4] Vital Moreira, “Corporativismo (9): A Ordem fora da lei” https://causa-nossa.blogspot.com/2019/02/corporativismo-9-ordem-fora-da-lei.html
[5] Ana Rita Cavaco, Bastonária da Ordem dos Enfermeiros, ”O que é importante é o Governo perceber de uma vez por todas que os Enfermeiros querem negociar”, https://www.ordemenfermeiros.pt/noticias/conteudos/o-que-%C3%A9-importante-%C3%A9-o-governo-perceber-de-uma-vez-por-todas-que-os-enfermeiros-querem-negociar/

 

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 11 de fevereiro de 2019)

A importância das cidades inteligentes e dos dados abertos

“Se o poder político é exercido pelo povo, então é necessário assegurar aos cidadãos uma forma de participação direta e ativa. Só que esta participação do povo dominante não se compadece com a colaboração intermitente, antes exige uma participação exigindo intervenção permanente que possibilite, não apenas uma democracia representativa, mas uma autêntica democracia participativa. Ao alargar o papel da participação direta e ativa do cidadão na vida política, a Constituição da República Portuguesa atribui valor normativo à ideia de democratização da democracia, alargando as formas de cidadania ativa para além dos esquemas clássicos da democracia representativa”  Gomes Canotilho e Vital Moreira (2007)

A forma de governo dos cidadãos escolhidos pelos cidadãos, que respondem aos próprios cidadãos e são legitimados por atos desses cidadãos, continua a ser a menos má de todas as formas de governo. Mesmo quando os resultados não são os melhores, ou quando os representantes eleitos remetem a jogos falaciosos que podem deitar ao descrédito o sistema que lhes deu o poder, a democracia continua a gozar de apoio considerável em Portugal.

Mas esta apreciação global, agora positiva, não nos isenta da obrigação de procurarmos uma forma melhor de sermos representados através de uma maior participação dos cidadãos na democracia.

Joseph Stiglitz, antigo economista chefe do Banco Mundial, tem também defendido a aproximação da governação aos cidadãos pela sua participação nos processos governativos. “Não sou, no entanto, otimista sobre a probabilidade de ocorrer uma reforma de governança, particularmente no que toca a reformas profundas do voto e representação. Aqueles que controlam uma organização não estarão aparentemente disponíveis para entregar o controlo facilmente”.

À escala local, nos municípios, este aumento de participação é tão mais importante quanto a maioria que elege não consiga avaliar os eleitos sem ver “obra feita”. Elegemos os nossos representantes para gerir os municípios, mas avaliamo-los no voto pelas melhorias que estes prometem fazer, sem para isso contrabalançar com os restantes objetivos de gestão.

A maioria que elege tem de conseguir relacionar-se com os resultados obtidos sem que para isso o eleito tenha de ereger ou prometer ereger obra que não era necessária. Mais uma rotunda, mais um lanço de ciclovia ou mais uma estátua não se podem sobrepor à necessidade de nos mantermos nos limites da gestão. As iniciativas têm de ser avaliadas face aos benefícios mensuráveis que os cidadãos vão obter.

As cidades inteligentes (Smart Cities) vêm abrir um novo potencial de abertura da democracia pela possibilidade de aumentar o nível de informação disponível aos cidadãos. Não estou a falar de mudar lâmpadas incandescentes por lâmpadas de baixo consumo e longa duração. Estou a falar da recolha e apresentação de dados que hoje em dia é possível através da orquestração das atividades na cidade nos computadores.

Os cidadãos atuais são pessoas informadas e o acesso à internet permite-lhes aceder a todo o tipo de informação. Queremos que estes cidadãos possam ver nos resultados de governação das cidades as melhorias aos indicadores que as iniciativas se propuseram implementar.

A ideia de cidades inteligentes tem de ser suportada na ideia de mais e melhor democracia para as cidades. É uma obrigação de quem representa cidadãos de lhes disponibilizar a informação que lhes permitirá julgar por si sem necessitarem de opinadores como seus intermediários.

Entrar hoje num edifício municipal deveria permitir ao cidadão tomar conhecimento de como esse edifício é gerido, sem que para isso tenha de solicitar relatórios. Essa informação devia estar disponível em painéis logo à entrada, indicando os recursos consumidos e as melhorias a esses consumos feitas no âmbito da atuação da gestão camarária.

Avançar para iniciativas como o orçamento participativo é bom, mas quem propõe medidas neste âmbito terá de ter mais informação sobre a gestão do seu município para o poder fazer de forma informada e com isso ser comprometido com os resultados das iniciativas que propõe.

A informação tem de ser disponibilizada em dados abertos e livres. Só assim poderão ser entendidos como fiáveis e só assim poderão os cidadãos estar à altura da tarefa complexa que é participar mais nos atos de gestão em democracia.

O afastamento dos cidadãos dos atos eleitorais e a crença de que a filiação partidária é uma marca para a falta de capacidade para pensar tornou-se numa característica da narrativa anti-políticos e anti-sistema que tem de ser combatida.

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 26 de fevereiro de 2018)