Digitalização do trabalho

A digitalização da economia significou a substituição da interação humana direta por outra que passa, por exemplo, por computadores a facilitar funções dantes executadas por humanos.

Vinte anos depois de o campeão mundial de xadrez ser batido pelo computador Deep Blue, ainda há quem pense que nada irá mudar.

Quando substituíram os cavalos, disseram aos criadores que não se preocupassem porque continuaria a haver trabalho para eles. Cem anos depois, os cavalos são animais exóticos de estimação.

Na evolução para a inteligência artificial, que terá a sua vulgarização para breve, programas de computador como o Watson ou a Alexa passarão a criar os seus próprios guiões de conversação das marcas com os clientes, substituindo assim as pessoas definitivamente, por exemplo, no atendimento telefónico ao público.

Esta digitalização veio com a promessa de aumentar a eficiência dos processos de trabalho, reduzir os erros e assim aumentar a satisfação dos clientes, o que dito desta forma é bom, significa progresso e libertação dos cidadãos para desempenharem funções mais exigentes do ponto de vista cognitivo.

A digitalização da economia só veio a existir por via da digitalização do trabalho. Onde dantes haviam grupos de datilógrafas a aguardar por um texto para passar a limpo, temos hoje um computador com um processador de texto.

O processador de texto faz-nos hoje a correção de erros de sintaxe e ortografia automaticamente, oferece-nos sugestões de palavras e até frases para concluirmos mais rapidamente e com menos erros os nossos textos.

A digitalização do trabalho permitiu a criação de plataformas eletrónicas de contratação, criadas sobre as tecnologias de informação e comunicação, que vieram criar uma relação de trabalho em que o trabalhador não se relaciona com os outros trabalhadores e nunca conheceu a sua hierarquia direta pessoalmente.

As decisões são derivadas de algoritmos de leilão, onde os serviços são vendidos ao preço mais baixo à plataforma e pagos ao preço mais alto pelo cliente. O cliente é ele próprio intermediado por estas plataformas e para as utilizar tem de aceitar termos legais de relacionamento que não aceitaria dantes, onde toda a sua interação com a plataforma pode ser perfilada para gerar mais lucros aos donos da plataforma ou para lhe negar serviços.

Os cidadãos, empregados, clientes ou em prestação de serviços, lidam nesta economia digitalizada com um ambiente de controlo mais frequente e mais detalhado, com mudanças mais rápidas e num modelo de oferta de trabalho e de serviços precária onde uma marca, que hoje faz um serviço, amanhã desapareceu.

Os meios de trabalho digitalizados e as plataformas eletrónicas da Gig economy, a economia do trabalho e dos serviços sem compromissos, criaram relações contratuais pouco claras, desalinhadas dos padrões que conhecíamos e que criam enormes dificuldades em identificar qual a relação dos trabalhadores e dos clientes com a empresa que gere a plataforma. A redistribuição da riqueza cabe aos algoritmos controlados pela plataforma sem hipótese de serem influenciados por quem trabalha.

A vulgarização do termo “empreendedor” da Gig Economy foi usada para mascarar trabalho e outras relações previstas na lei, trocando nomes e dificultando a determinação do padrão legal aplicável.

Alguns dos casos da Gig economy, levados a tribunal noutros países europeus, tiveram como conclusão que as relações entre a plataforma digital e quem oferece o seu trabalho em troca de dinheiro não são mais do que relações de trabalho, fazendo destes cidadãos trabalhadores precários de marcas de sucesso.

As decisões destes tribunais reforçaram ainda a ideia de que, dada a relação jurídica desequilibrada entre estas duas partes, não haveria qualquer hipótese daquele que oferecia o seu trabalho poder algum dia vir a aumentar o seu ganho sem trabalhar mais horas seguidas por dia, pois os termos do seu contrato impediam que este inovasse ou contratasse mais pessoas para trabalhar com ele, deixando-o numa dependência total da plataforma.

A Gig Economy, a economia que vive do trabalho sem contrato e rendimentos fixos, veio oferecer um rendimento extra a alguns, mas significa trabalho a tempo inteiro para outros. A atomização dos postos de trabalho expõe os trabalhadores ao comportamento predatório de empregadores.

A precarização de relações da Gig Economy entre o empresário, o cliente e os trabalhadores veio criar uma incerteza que tem de ser controlada.

Enquanto alguns ativos podem ser armazenados, descontinuados ou revendidos, os cidadãos são um capital finito e perecível e, no caso de Portugal, os soberanos do seu próprio país.

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 23 de junho de 2017)