Pode uma ordem profissional confundir-se com um sindicato?

A resposta é não.

Uma ordem profissional não pode defender interesses de classe, até porque “[a]penas podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, estando expressamente afastado o exercício de funções próprias das associações sindicais.” [1].

Uma ordem não é um sindicato, nem pode ser porque não é uma associação de adesão livre. É uma organização que, por delegação do legislador, regula e fiscaliza a atividade dos profissionais que executam a profissão que controlam.

Não seria lógico entregar uma função de controlo de qualidade a quem tem de fazer a defesa de um interesse que é constrangido por essa qualidade.

Nitidamente, uma associação que tivesse o poder regulatório e fiscalizador de uma profissão, e ao mesmo tempo a pressão para obter resultados negociais, estaria num constante dilema entre a defesa dos interesses dos associados e a defesa do interesse público.

Mas esta mistura não aconteceu, nem pode acontecer. Isso seria impor uma classe profissional que para exercer essa profissão tinham de aderir a uma associação de defesa de interesses, sem escolha, sem opção por outra com a sua visão política.

Existem hoje múltiplos sindicatos para cada profissão, empresa, o que reduz a capacidade de um só sindicato controlar toda a atividade de um setor, mas só existe uma ordem por profissão.

No confronto entre a vontade de dar as condições à defesa de um grupo e o direito de todos os outros membros de um grupo em não concordar com a forma reivindicativa, a vontade política tem separado as funções e poderes. Isto retira aos sindicatos a possibilidade de negarem o direito ao trabalho e às ordens de manterem reféns ideológicos aqueles profissionais que não concordem com a sua visão.

“As associações públicas profissionais estão impedidas de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros.”[2]

“Os sindicatos, como associações de direito privado, são de criação e de inscrição voluntária e que não dispõem de poderes de autoridade pública (salvo casos excecionais de delegação)” [3].

“De resto, se as ordens pudessem envolver-se na defesa de reivindicações laborais (carreiras, remunerações, etc.) junto com os sindicatos, as profissões “ordenadas” gozariam de um privilégio de que as demais profissões não dispõem, ou seja, um “supersindicato” com inscrição e quotização universal e obrigatória.”[4]

Imaginem agora que um órgão com poder sancionatório sobre um profissional, que pode tirar o ganha pão da boca desse profissional, usurpava o direito dos sindicatos e se dedicava à organização sindical, usando o seu poder público como meio de divulgação da sua posição.

Adivinhem agora quem disse que “O que é importante é o Governo perceber de uma vez por todas que os Enfermeiros querem negociar” [5]. Foi um dirigente sindical ou estas são as Declarações à SIC da Bastonária da ordem dos enfermeiros?

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[1] Conselho Nacional das Ordens Profissionais, “A função das ordens profissionais”, https://www.cnop.pt/sobre/funcoes/
[2] Lei n.o 2/2013 de 10 de janeiro “Estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais”
[3] Vital Moreira, “Para que servem as ordens profissionais?”, https://www.publico.pt/2010/08/31/jornal/para-que-servem-as-ordens-profissionais-20113088
[4] Vital Moreira, “Corporativismo (9): A Ordem fora da lei” https://causa-nossa.blogspot.com/2019/02/corporativismo-9-ordem-fora-da-lei.html
[5] Ana Rita Cavaco, Bastonária da Ordem dos Enfermeiros, ”O que é importante é o Governo perceber de uma vez por todas que os Enfermeiros querem negociar”, https://www.ordemenfermeiros.pt/noticias/conteudos/o-que-%C3%A9-importante-%C3%A9-o-governo-perceber-de-uma-vez-por-todas-que-os-enfermeiros-querem-negociar/

 

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 11 de fevereiro de 2019)

A importância das cidades inteligentes e dos dados abertos

“Se o poder político é exercido pelo povo, então é necessário assegurar aos cidadãos uma forma de participação direta e ativa. Só que esta participação do povo dominante não se compadece com a colaboração intermitente, antes exige uma participação exigindo intervenção permanente que possibilite, não apenas uma democracia representativa, mas uma autêntica democracia participativa. Ao alargar o papel da participação direta e ativa do cidadão na vida política, a Constituição da República Portuguesa atribui valor normativo à ideia de democratização da democracia, alargando as formas de cidadania ativa para além dos esquemas clássicos da democracia representativa”  Gomes Canotilho e Vital Moreira (2007)

A forma de governo dos cidadãos escolhidos pelos cidadãos, que respondem aos próprios cidadãos e são legitimados por atos desses cidadãos, continua a ser a menos má de todas as formas de governo. Mesmo quando os resultados não são os melhores, ou quando os representantes eleitos remetem a jogos falaciosos que podem deitar ao descrédito o sistema que lhes deu o poder, a democracia continua a gozar de apoio considerável em Portugal.

Mas esta apreciação global, agora positiva, não nos isenta da obrigação de procurarmos uma forma melhor de sermos representados através de uma maior participação dos cidadãos na democracia.

Joseph Stiglitz, antigo economista chefe do Banco Mundial, tem também defendido a aproximação da governação aos cidadãos pela sua participação nos processos governativos. “Não sou, no entanto, otimista sobre a probabilidade de ocorrer uma reforma de governança, particularmente no que toca a reformas profundas do voto e representação. Aqueles que controlam uma organização não estarão aparentemente disponíveis para entregar o controlo facilmente”.

À escala local, nos municípios, este aumento de participação é tão mais importante quanto a maioria que elege não consiga avaliar os eleitos sem ver “obra feita”. Elegemos os nossos representantes para gerir os municípios, mas avaliamo-los no voto pelas melhorias que estes prometem fazer, sem para isso contrabalançar com os restantes objetivos de gestão.

A maioria que elege tem de conseguir relacionar-se com os resultados obtidos sem que para isso o eleito tenha de ereger ou prometer ereger obra que não era necessária. Mais uma rotunda, mais um lanço de ciclovia ou mais uma estátua não se podem sobrepor à necessidade de nos mantermos nos limites da gestão. As iniciativas têm de ser avaliadas face aos benefícios mensuráveis que os cidadãos vão obter.

As cidades inteligentes (Smart Cities) vêm abrir um novo potencial de abertura da democracia pela possibilidade de aumentar o nível de informação disponível aos cidadãos. Não estou a falar de mudar lâmpadas incandescentes por lâmpadas de baixo consumo e longa duração. Estou a falar da recolha e apresentação de dados que hoje em dia é possível através da orquestração das atividades na cidade nos computadores.

Os cidadãos atuais são pessoas informadas e o acesso à internet permite-lhes aceder a todo o tipo de informação. Queremos que estes cidadãos possam ver nos resultados de governação das cidades as melhorias aos indicadores que as iniciativas se propuseram implementar.

A ideia de cidades inteligentes tem de ser suportada na ideia de mais e melhor democracia para as cidades. É uma obrigação de quem representa cidadãos de lhes disponibilizar a informação que lhes permitirá julgar por si sem necessitarem de opinadores como seus intermediários.

Entrar hoje num edifício municipal deveria permitir ao cidadão tomar conhecimento de como esse edifício é gerido, sem que para isso tenha de solicitar relatórios. Essa informação devia estar disponível em painéis logo à entrada, indicando os recursos consumidos e as melhorias a esses consumos feitas no âmbito da atuação da gestão camarária.

Avançar para iniciativas como o orçamento participativo é bom, mas quem propõe medidas neste âmbito terá de ter mais informação sobre a gestão do seu município para o poder fazer de forma informada e com isso ser comprometido com os resultados das iniciativas que propõe.

A informação tem de ser disponibilizada em dados abertos e livres. Só assim poderão ser entendidos como fiáveis e só assim poderão os cidadãos estar à altura da tarefa complexa que é participar mais nos atos de gestão em democracia.

O afastamento dos cidadãos dos atos eleitorais e a crença de que a filiação partidária é uma marca para a falta de capacidade para pensar tornou-se numa característica da narrativa anti-políticos e anti-sistema que tem de ser combatida.

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 26 de fevereiro de 2018)

O futuro da proteção de dados no local de trabalho

A forma como hoje funcionam as empresas, a capacidade de retenção de dados e a velocidade com que esses dados podem ser tratados, aumentou as oportunidades para o tratamento estatístico de dados dentro das empresas. Estas oportunidades aumentaram a informação de suporte às decisões dos seus gestores e com isso a sua capacidade de decisão.

Estas oportunidades estão disponíveis em organizações de qualquer dimensão. Não há hoje pequeno escritório ou loja que não tenha um computador. Qualquer café tem um sistema de vídeo-vigilância, e basta alguns euros por mês para adquirir serviços de e-mail. Todos passíveis de serem minados para obtenção de indicadores.

As organizações podem por isso recorrer cada vez mais a estas oportunidades para otimizarem os seus consumos de serviços e ou organizar as suas atividades. A competição a isso obriga.

Nas grandes organizações, os gestores de sistemas de informação (CIO – Chief Information Officer) gerem hoje mais dados e mais meios de recolha de dados e produção de indicadores do que há 10 anos seria imaginável.

Os parques de impressão, o tráfego das redes de comunicações, os termostatos dos ares condicionados, a ocupação dos elevadores, os acessos aos meios físicos, tudo isto e muito mais tem um sistema, uma aplicação, um registo. Estes registos são quase todos informatizados.

A digitalização do trabalho substituiu grande parte da interação entre pessoas, através de plataformas eletrónicas, por relações que passam por intermediários que permitem todo o tipo de registos.

Nos sistemas de registo em que os dados não são informatizados, estes ficam hoje registados de tal forma que, com um computador e um digitalizador ligado, rapidamente são transformados. Os dados registados em letra de imprensa nas quadrículas dos formulários, mesmo que manuscritos, podem facilmente tornar-se num conjunto de dados tratável num computador.

O tratamento desses dados de forma automatizada e as interpretações que são feitas pelos gestores das normas em vigor são por isso uma preocupação crescente na defesa dos direitos dos cidadãos, em especial, dos trabalhadores.

Os trabalhadores têm uma relação de dependência muito maior da entidade patronal que outro cidadão, o que os torna vitimas fáceis de interpretações das normas de tratamento de dados.

Por essa razão, a UNI Global Union, organização que representa 20 milhões de trabalhadores em 900 sindicatos de 150 países, decidiu criar um documento orientador para a proteção dos direitos sobre os dados dos trabalhadores no local de trabalho.

Este documento procura, através de 10 princípios, endereçar o crescente desequilíbrio provocado pelo tratamento de dados no local de trabalho. O documento apresenta assim o conjunto de reivindicações que os trabalhadores mundiais devem fazer para proteger os seus direitos.

Estes 10 princípios apontam para os direitos de proteção de dados dos trabalhadores, de forma independente e com capacidade de exigência de explicação da forma e dos fins para que os dados são processados, com direito de acesso e influência sobre os dados colecionados sobre os trabalhadores, pelo próprio trabalhador e pelas organizações representativas dos trabalhadores (ORT).

Nada disto deveria ser novo, tendo em conta o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) que, muito em breve, por via da sua aplicação direta no nosso país, passará a permitir a aplicação de multas avultadas a quem não o cumpra.

Mas de pouco vale a um trabalhador a deteção e julgamento a seu favor de um erro de tratamento de dados por uma entidade patronal. Depois de os seus dados serem utilizados para além dos objetivos para os quais foi permitida a recolha, não haverá fanfarra ou registo publicitado do erro cometido pela entidade patronal.

Terão por isso de ser os trabalhadores a fazer valer estes direitos antes dos incidentes. Terão de fazê-lo com a introdução destes princípios nas negociações coletivas e através do controlo constante da aplicação dos direitos que aí adquiram.

Como cidadãos temos de estar vigilantes na defesa dos nossos direitos. Como trabalhadores ainda mais.

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 16 de fevereiro de 2018)

Comentadores e candidatos independentes

Os comentadores independentes autocertificados são algo que não é de hoje nem vai terminar depois das eleições. Certificam-se a eles próprios da sua independência, querendo fazer crer aos outros que a sua independência resulta de não estarem, nem nunca terem estado, filiados num partido político.

Não me estou a insurgir contra os pensadores que se dizem independentes, longe disso. Estou contra aqueles que entendem que não podemos ter uma filiação partidária para podermos pensar de forma livre.

A independência de alguém não é um estatuto que se atinja por levar uma vida asceta, longe dos locais de debate político e sem nunca ter comprometido uma posição para atingir um bem maior.

Alguém que nunca se comprometeu com nada nem com ninguém terá certamente dificuldade em perceber uma filiação partidária.

Uma filiação partidária não é, nem pode ser um castramento intelectual, bem pelo contrário. A filiação partidária deve servir para dar um primeiro palco para que cada cidadão debata as suas ideias em espaço mais ou menos seguro, dentro de um grupo com uma visão genericamente semelhante à sua.

A filiação ou militância partidária implica um compromisso de apoio ao esforço comum do grupo para a construção de uma visão. A filiação partidária implica a participação nos debates para os estudos internos, o conhecimento das matérias em debate, para poder debatê-las, e a atualização com os resultados dos debates anteriores para não revisitar temas há muito resolvidos.

Não podemos esperar que o partido em que estamos filiados nos venha abrir a cabeça e injetar-nos lá para dentro as conclusões de outros debates em que o partido não participou. Depende, pois, de cada um dos militantes escutar o que pensam os outros fora dos debates internos do partido e com isso melhorar a posição comum onde ela possa ser melhorada.

Com a ideia de que são necessários comentadores independentes para uma espécie de esterilização do debate, vem também a ideia de que um candidato independente pode de alguma forma ser superior a um candidato nas listas de um partido.

Também não me estou a insurgir contra os candidatos independentes só por si. Estou sim contra os candidatos e eleitos que se afirmam à margem do sistema político, descomprometidos e, por isso, acima de qualquer decisão anterior dos partidos.

É bom que existam cidadãos que se mostrem disponíveis para debater e testar a sua visão junto do eleitorado e, quem sabe, trazer para fora do debate nos partidos aquilo que não está na agenda partidária.

Mas um candidato, para ser independente, não tem de ser apartidário ou nunca ter militado num partido político. Isso não o isenta de ter uma visão política ancorada exclusivamente numa ideologia.

O que isso certifica é que a sua visão política não passou por um processo conhecido de debate e generalização da vontade de grupo.

A independência não pode vir de não termos participado ou ouvido os outros. Tem de vir de sabermos distinguir a nossa opinião daquilo que resulta da análise sistemática dos dados observados que podem guiar as nossas decisões.

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 25 de setembro de 2017)